Assim como na prática psicanalítica se confere importância ao impacto pulsional na vida do indivíduo e à maneira pela qual ele pôde construir um destino para tal, também, no campo da arte, as criações do indivíduo podem ser tomadas como novas formas possíveis de representação desse mal-estar provindo das intensidades pulsionais. A criação artística e aquilo que ela enuncia denotam, sobretudo, um espaço vazio e a carência de um sentido único estabelecido. Ao se encontrar com a obra literária, por exemplo, o espectador/autor se deparará com essa fenda, com brechas que expõem crateras no texto, proporcionando com que se implique nas entrelinhas, como um convite para que se coloque ativamente no processo, se inscrevendo no espaço fissurado ao se haver com isso que falta.
Para que o sujeito faça arte utilizando a sua criatividade, ele precisa alimentar-se da fantasia, sendo a sustentação desse processo fantasístico, através da sublimação, fundamental para o psiquismo. Tanto o ato artístico quanto o ato psicanalítico tem o potencial de trazer à luz notícias do sujeito do inconsciente que não deixa de se enunciar. Ambas têm o caráter de abarcar a dimensão pulsional do indivíduo, aquilo que o atravessa, que deixa marcas e pode ser expressado em ato. Cada pessoa terá o seu traço individual, as suas curvas caligráficas, a intensidade com que delineia o espaço, os seus pontos que guiam o olhar, sua paleta de cores e a perspectiva com que emolduram a tela.
A arte, assim como a psicanálise, é uma via pela qual o indivíduo pode buscar um balanceamento frente ao desequilíbrio inerente à condição humana, pois, tanto o ato criativo quanto o analítico são capazes de produzir rupturas e descontinuidades nos alicerces da subjetividade, possibilitando a criação de novas formas de ser/estar. Ao se enfocarem nas tensões, ambivalências, paradoxos e dualidades que permeiam o indivíduo, tais atos têm a capacidade de romper com a inércia que nutri ideais de completude e padrões inconscientes repetitivos construídos pelo sujeito para lidar com sua condição desamparada, mas que também geram sofrimento e o engessam em uma forma de viver sem muita escolha. Dessa forma, é fornecida uma visibilidade e possibilidade de encontro com uma experiência de vazio, ou que se dá em torno dele, sendo esta constitutiva e necessária para a saúde psíquica.
Hoje a psicanálise pode estar se deparando com uma falta de lugar, para além da clínica clássica que iniciara com Freud. Acredito que o alcance dessa prática é inestimável, como também necessária sua interlocução com outras áreas do conhecimento, como a arte. Ao se deparar com as tecnologias e recursos que a época dispõe, a psicanálise vai se adaptando e se aprimorando, como no contexto atual, sendo realizados em larga escala atendimentos online. Da mesma forma que o analisando entra em processo de análise ao assumir o não saber, buscando encontrar novos caminhos ao se defrontar com o misterioso labirinto interno que o habita, e pelo qual ele repete sempre o mesmo circuito, nunca encontrando uma saída possível, ou menos dolorosa, “o ensaísta é aquele que sai do centro e arrisca se perder” (Rivera, 2018 p. 120)¹.
Assim, a psicanálise, ao ser descentrada de seu lugar habitual, é convocada a ocupar lugares múltiplos, colocando-se em movimento, assim como a arte, que se refaz a cada obra, interrogando-se a si mesma o tempo todo. A flexibilidade e mobilidade são capacidades que permeiam ambos os campos referidos aqui, sendo visadas pela psicanálise, teoria que se constrói e se modifica, sobretudo na clínica. Não é por acaso que a possibilidade de criação de novos enunciados e de lugares para si é estimado durante um processo psicanalítico, pois com isso o sujeito poderá traçar diferentes caminhos pelos quais percorrer, ao desenosar as amarras que limitam seu circuito, se desprendendo da compulsão em repetir sempre o mesmo, aquela via familiar através da qual não se abre espaço para seu desejo.
¹Rivera, T. (2018). O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: SESI-SP, 1ªed.